Se inventassem uma escala de valor para as coisas, se as coisas fossem enumeradas conforme sua importância para a humanidade, em que lugar estaria o plástico? A resposta pode ser resumida numa só conclusão: tudo hoje em dia leva plástico.
Tudo é plástico. Não há um aparelho que não tenha plástico, não há nada que consiga escapar deste material. Ai, ai, ai. Como é chato explicar melhor estas questões para os leitores mais exigentes. Ok, nem tudo no mundo tem plástico. Um anel de ouro não tem. Mas o que vale é a força da expressão. Então: não há nada no mundo moderno que fuja do plástico.
Ele merece, na escala das descobertas importantes, pelo menos o 5º lugar. 1º, a roda. 2º, o fogo. 3º, as armas. 4º, as pílulas anticoncepcionais. 5º, o plástico. Depois vem uísque, xampu, forno de microondas de bandeja giratória, tinta para cabelos, etc.
Como que cada pessoa pode ser tão imensamente diferente da outra e isso ser tão óbvio, a ponto de não pensarmos com mais afinco sobre tal fenômeno? Pois são milhares e milhares e milhares de seres com seus respectivos narizes no meio dos seus respectivos olhos e suas bocas e suas bochechas. Orelhas de abano, ou pequenas demais, lábios grossos, ou desses estreitos, olhares vesgos, verdes, azuis, castanhos.
Nem gêmeos idênticos são idênticos. Há o andar, a maneira de segurar uma xícara, a reação a uma dor. As pessoas são tão ricas; e tanto me atraem, quando repelem. Aquele incontrolável impulso que nos guia ao hediondo. Uma vez eu estava na fila do supermercado, era uma longa fila e e eu tinha apenas que pagar por uma garrafa de uísque.
Tentava me distrair da irritante espera. Quando vi uma mulher monstruosa. A formação craniana dela era deformada, fazendo com que um olho quase saltasse da testa e que os cabelos surgissem de um tampo gigantesco. Berrei. Foi terrível a minha reação, mas, pega pela surpresa e feiúra, não tive alternativa.
Fico imaginando se eu fosse a mulher-monstro, como seria? Se ainda estaria viva ou se teria me matado, ali mesmo no supermercado, quem sabe antes. Mas não era exatamente sobre isso que eu estava falando e não quero fugir dos meus pensamentos iniciais. Falava sobre o único que é cada ser humano. Bom assunto.
Porque somos todos tão tagarelas, tão impacientes na nossa agilidade de modernos, que não enxergamos no outro seus ingredientes especiais. Então não importa quantas pessoas morreram na enchente da semana passada. Elas já são pessoas mortas e, coitadas, assim devia ser. Ninguém pensa que a criança que dormia enquanto morria soterrada era, pela primeira e última vez no mundo, ela. Aquela criança não vai voltar. Dela restou o olhar, que é da mãe, os pés chatos, que são do pai, e um irmãozinho que tem a mesma pinta de nascença da coxa.
Desde pequena tenho esse hábito, injustamente confundido com não fazer nada, de ficar observando as pessoas. E jamais foi desagradável fazer longas viagens de ônibus. Morar longe de tudo. Em parte, aliás, foi este o motivo de tantas elocubrações. Bastava ter lugar para sentar e alguns tipos para analisar.
Eu era capaz de concluir sobre uma vida inteira, só precisava olhar a nuca do indivíduo. Foi quando determinei que existem apenas três defeitos físicos decididamente irremediáveis: não ter cintura, ter tornozelo grosso e braços curtos. E que somente em situação de último recurso uma mulher deve usar franja. Ou ter a testa pequena demais ou demasiadamente arredondada. E em ambos os casos nunca uma franjinha, mas um franjão, que vem lá do centro da cabeça até rente às sobrancelhas.
Fico pensando se faltasse em minha vida a literatura. Imagino como eu estaria. Dizem que, durante o sono, a mente seleciona aquilo que é importante registrar do que irá para o lixo. Devo sofrer algum tipo de insuficiência seletiva, uma vez que a minha cabeça está sempre transbordando inutilidades. Escrevo romances por isso, para esvaziar o cérebro, para xeretar a vida dos outros sem atormentar ninguém. E concordo com um autor, não me lembro qual, eu mesma?, que dizia: se todo mundo mantivesse os olhos presos num livro, não seria necessário a intriga.
Trecho do livro "A Sombra das Vossas Asas" de Fernanda Young, Editora Objetivo, gravado pela escritora no CD "AD", da coleção SambaLoco, da Trama.
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